Dados estatísticos mostram que 78,4% dos comentaristas de literatura são escritores frustrados. Anos atrás cometi dois livros: uma novela e uma seleção de crônicas. Logo em seguida comecei a escrever sobre livros.
A experiência de autor despertou sentimentos primitivos de autodefesa. Como já li bastante na vida, constatei o óbvio: ao longo dos séculos, tudo nesse mundo que pode ser transformado em romance, conto, poesia ou crônica já está registrado em algum livro. A originalidade é impossível. Mesmo a graça, o medo, o drama, a ironia ou a revolta já foram explorados em demasia. Não é a falta de talento que impede meu brilho. O mundo é repetitivo e todos estamos condenados a pisar e repisar os mesmos assuntos, com as mesmas fórmulas surradas pelo resto dos dias.
Mas aí, vinda lá dos confins da Ásia, me aparece a Bora Chung e destrói toda essa ilusão criada às custas de muita autocomiseração. Coelho Maldito, lançado há pouco no Brasil, prova que é possível fazer algo novo e surpreendente – mesmo quando a autora flerta com temas e formatos clássicos. Mestre em literatura russa e do leste europeu e Phd em literatura eslava, a escritora sul coreana traz muito daquela que é a melhor tradição literária mundial em seus dez contos.
O absurdo (uma cabeça que aparece no vaso sanitário, uma raposa que sangra ouro, fantasmas que perambulam por praças) tratado como algo corriqueiro, no enredo ou em situações específicas, recupera Kafka (A Metamorfose) e Gogol (O Nariz). Já a “magia” de algumas passagens e personagens lembra Liudmila Petruchevskaia (Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha) e vários contos de Isaac Bashevis Singer. O livro tem ainda uma fábula bastante desvirtuada, sem moral da história ou redenção dos personagens, terror e realismo mágico à moda de Silvina Ocampo. Muitas vezes, aliás, os contos de Chung causam certo desconforto semelhante àquele que se tem ao ler A Fúria, principal obra da escritora argentina.
Chung não renega os clássicos. Pelo contrário: é evidente que ela conhece e se inspira no que já foi feito de melhor por aí. Mas – e eis o salto – ela parte da tradição para criar seu próprio grande livro. O texto que abre e dá nome à seleção – Coelho Maldito – conta a história de uma família que produz itens para maldições e já mostra o que vem pela frente: fantasia, ritmo e histórias surpreendentes. A escritora também abusa do talento para criar tensão em Dedos Gélidos e dá um passo rumo ao futuro, antecipando medos que teremos daqui a alguns anos, com o estranhamente verossímil Adeus, meu amor.
A Cicatriz inclui até um monstro alado. Mas nem ele se sai pior do que os homens (ao menos os vivos, já que os fantasmas são menos danosos) nas páginas do livro. Os personagens de Coelho Maldito são um desastre. Egoístas, ingratos, agressivos, traidores e gananciosos, causam inúmeros problemas para as mulheres e raramente estão dispostos a ajudar (queira Deus que as mulheres pensem que também aí tudo não passa de fantasia!). A capa da edição brasileira traz a informação de que o livro esteve entre os finalistas do International Booker Prize. Um reconhecimento mais que merecido a uma obra que deve estar na cabeceira de todos que gostam de ler e estão dispostos a se surpreender com uma criação ao mesmo tempo inspirada em clássicos, inovadora e perturbadora.