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Coluna Leitura | “Tá com pena? Leva pra casa!”
20 de Março de 2024

Coluna Leitura | “Tá com pena? Leva pra casa!”

Séculos depois de Swift, ainda não há uma boa solução para a pobreza que nos assola

Por Rogério Kiefer 20 de Março de 2024 | Atualizado 21 de Março de 2024

 

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O motoqueiro ignorou o sinal vermelho e acertou em cheio o pedestre na faixa. O Alzir, catador de latas, alçou voo e desabou no meio do cruzamento, dois ou três metros adiante. Levado até a emergência mais próxima, desistiu do hospital depois de duas horas de espera inútil. Passou semanas com a perna inchada e roxa. A dor intensa sumiu com o tempo, mas o catador de latinhas sofre quando caminha. 

Não importa: no grupo do condomínio, o desdentado, analfabeto e agora manco Alzir é sinônimo de grave ameaça à segurança e ao bem-estar da comunidade. Em outras partes da cidade, o assustador é o restaurante popular, a barraca embaixo do viaduto ou o bebum. 

Não é de hoje que a pobreza incomoda e assusta. Em 1729 o grande Jonathan Swift se debruçou sobre a miséria em um texto clássico:  Uma modesta proposta. 

“É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande cidade, ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três, quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante pedindo esmola. 

Estas mães, não sendo capazes de trabalhar para angariar honestamente a vida, vêem-se forçadas a gastar todo o tempo que têm a andar por ali, a mendigar o sustento para os seus filhos desprotegidos. E estes, depois de crescerem, ou se tornam ladrões por falta de trabalho, ou abandonam o seu querido país natal para se irem alistar num exército inimigo, ou se vendem como emigrantes para os Barbados”. 

Swift não se limitou ao caminho fácil e preguiçoso de apenas constatar o problema. Ele diz que “quem quer que possa encontrar um método justo, barato e fácil para transformar estas crianças em membros saudáveis e úteis à comunidade, deverá não só merecer a aprovação do público, como ver ser-lhe erguida uma estátua como salvador da nação” e propõe uma solução. Por que não transformar os bebês das famílias miseráveis em suculentos pratos de carne com batatas para alimentar aos mais ricos? Em vez de um fardo, dessa forma as  crianças teriam a felicidade e oportunidade de beneficiar a sociedade. Necessário explicar logo, como faziam os apresentadores de TV de antigamente: não tentem fazer isso em casa! Modesta Proposta é um texto satírico. Swift usou o absurdo da situação  para um alerta sobre a gravidade do problema.  

Quase 300 anos depois, os pobres escaparam da panela e ainda estão por aí. Já não provocam muita melancolia ou tristeza, como disse o Swift. Em vez disso, despertam medo, péssimo conselheiro, e uma certa ojeriza em muita gente que quer ruas “limpas” e “livres” de gente “feia, suja e drogada”. Não há, claro, solução simples para o problema. Mas é pouco provável que o caminho mais curto para buscar soluções seja o combate ao miserável – e não à miséria. 

O historiador Walter Benjamin falou da necessidade de escovar a história a contrapelo – e os felizardos que têm gato em casa vão entender o que ele quis dizer. A contrapelo, você vê as pulgas escondidas e falhas na pelagem do bichano.

Quando muita gente abraça a mesma história (a ideia da internação involuntária de pessoas como solução para um problema complexo, por exemplo), vale seguir o conselho do velho Benjamin e tentar ver o que há escondido por baixo da falação repetitiva. Os miseráveis que andam por aí não caíram do céu de uma hora para outra e não vão desaparecer. Pelo contrário: basta ler os jornais e acompanhar as mudanças na economia para entender que um número crescente de pessoas parece simplesmente inadequada para qualquer atividade econômica – e portanto condenada a andar por aí sem renda ou “utilidade”, essa última uma característica essencial em tempos de individualismo crescente. 

As cadeias não foram suficientes para trancar a todos – e os manicômios e casas de recuperação não devem dar conta da alta na demanda que está por vir. Uma realidade que por certo exige pensar no assunto com mais tranquilidade e sem abandonar a constatação, óbvia, de que um miserável é uma pessoa. 

O Alzir, por exemplo, é um desses sem utilidade que andam por aí. Ele cata latinhas, mas gera renda limitada a menos do que o essencial. Pior: agora, com a perna machucada, caminha distâncias cada vez menores e recolhe ainda menos latas do que tempos atrás. Pronto: vai terminar os dias ainda mais pobre.

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