Publicidade
Uma discussão sobre a maldade
19 de Maio de 2023

Uma discussão sobre a maldade

Por Rogério Kiefer 19 de Maio de 2023 | Atualizado 19 de Maio de 2023

Apenas monstros fazem coisas monstruosas. Apenas corruptos ancestrais, que já enganavam os colegas no jardim de infância, hoje aparecem nas delações ou em vídeos que flagram sujeitos carregando malas de dinheiro. O malvado nasce mau e os bons são um povo à parte, escolhidos sabe-se lá por quem e predestinados a fazer o certo e julgar e condenar os erros alheios.

As frases acima são reconfortantes. Infelizmente, são mentirosas. Muitas e muitas vezes, a diferença entre o feio, sujo e malvado e o bonito, limpo e imaculado é apenas uma questão de detalhe. Ou mero fruto do acaso. O pai de família que toma duas cervejas e dirige sem qualquer acidente pode até ser chamado por alguns de irresponsável, mas nada além disso. Se o mesmo sujeito atropelar uma senhora na faixa de pedestres, será um bêbado assassino. O indivíduo que agride verbalmente um menino de rua para afastá-lo do lugar onde estamos pode ser visto com certa condescendência. Se o moleque levar um safanão, cair, bater a cabeça e morrer, o agressor que não espere solidariedade.
Fronteiras tão tênues não podem ser ignoradas ou menosprezadas. Em vez disso, devem nos manter alertas. Todos estamos mais perto da monstruosidade do que imaginamos – ou do que gostaríamos de aceitar.

Publicidade

Por conta própria, criamos mecanismos de defesa. Diante de qualquer ato de brutalidade ou que contrarie normas básicas da vida em comunidade, surge de imediato a versão do “fato isolado”. A menina flagrada em atos racistas dentro de um estádio, mesmo cercada por dezenas de pessoas em atitude semelhante, assume sozinha o papel de vilã da história – o que de forma confortável nos livra de pensar nos preconceitos de cada um. Aquele que bate na mulher é o monstro que vale a pena apedrejar enquanto exercemos nossa própria macheza sendo mais grosseiros com as mulheres do que com homens nas relações do dia a dia.

Não se trata de procurar explicações ou desculpas para erros de quem quer que seja. Aqueles que ultrapassam as fronteiras que protegem a vida em sociedade precisam de punição. Mas é inegável que há um equívoco nas avaliações que definem uma separação clara e intransponível entre maldosos e bondosos. Em geral, somos todos uma mistura de anjos e demônios.

A literatura já se debruçou várias vezes sobre o assunto. Primo Levy (É isto um Homem, entre outros) e William Golding (O Senhor das Moscas) são autores de clássicos sobre o tema. Philip Roth escreveu: “Impureza, crueldade, maus-tratos, erros, excrementos, esperma – não tem jeito de não deixar. Não é uma questão de desobediência. Não tem nada a ver com graça nem salvação nem redenção. Está em todo mundo. Por dentro. Inerente. Definidora. A marca que precede a desobediência, que abrange a desobediência e confunde qualquer explicação e qualquer entendimento… A fantasia da pureza é um horror. É uma loucura. Porque essa busca da purificação não passa de mais impureza.”

Outro que estudou o assunto foi o americano Philip Zimbardo, autor de um livro essencial: O Efeito Lúcifer: o porquê da maldade. Em mais de 500 páginas, o psicólogo mostra as diversas razões que tornam menos nítida a fronteira entre ¿monstros¿ e gente normal. Mais que isso: ele defende que é equivocado avaliar um erro classificando o indivíduo responsável como “fruto podre” e seguindo em frente. Em vez disso, o psicólogo fala no cesto podre que ajuda a contaminar as frutas. O ambiente, diz, pode influenciar fortemente a ação das pessoas. Um policial reconhecido diversas vezes por bons serviços prestados à sociedade e que espanca de forma covarde uma pessoa é um herói que se converteu em bandido? Ou o que chamamos de herói ou bandido são a mesma pessoa em situações diversas?

A segunda opção parece correta.

Infelizmente.

Porque isso torna o mundo mais complexo – e exige nos mantermos alertas para não cruzar as fronteiras entre o céu e o inferno. Mais que isso: a tese da cesta podre que contamina os frutos democratiza responsabilidades. Quem faz vista grossa para a agressão contra o mendigo pode reclamar da sociedade violenta? Quem semeia intolerância tem autoridade para criticar atos extremos?
Zimbardo não livra criminosos de suas responsabilidades. Mas ele identifica fatores ambientais que contribuem para a formação da “cesta podre” que contamina a sociedade e a torna mais violenta. A receita inclui fatores como a desindividualização dos adversários, a necessidade de manutenção de posições de poder e até uma tendência demasiado humana de levar ao extremo a agressividade – principalmente quando não há risco de punição.

Zimbardo sabe do que fala. Há pouco ele esteve envolvido em julgamentos de soldados acusados de cometer atos de tortura contra presos de Abu Ghraib.

A participação de militares sem histórico de violência em episódios de humilhação e violência contra indivíduos sob sua guarda levou o psicólogo a estudar inúmeros arquivos e documentos e concluir que havia toda uma cadeia de comando complacente – sem falar de um histórico de “deslizes” acumulados e menosprezados.

Antes o psicólogo já havia estudado o assunto e chegou a conclusões preocupantes. Em um estudo clássico – A Prisão de Standford –, o professor juntou alunos em uma cadeia experimental. Os participantes foram selecionados em um processo que evitou a entrada na pesquisa de qualquer indivíduo com problemas de comportamento. Os resultados, que ficaram distantes do inicialmente esperado, foram desastrosos e reveladores.

Os estudantes foram divididos em dois grupos: carcereiros e prisioneiros. Depois de poucos dias, e sem qualquer orientação para isso, os primeiros já excediam suas responsabilidades e tomavam atitudes que humilhavam os colegas – dando ordens aos gritos, aplicando castigos e exercitando a autoridade pela autoridade. O efeito da certeza de impunidade e do poder sobre o grupo de carcereiros foi tão intenso que a experiência teve de ser suspensa vários dias antes do previsto para proteger os “presos”. Poder e impunidade são duas variáveis quase sempre presentes em episódios de violência ou injustiça.

O conhecimento do caráter essencialmente mau do homem não deve ser motivo para pessimismo. Pelo contrário: a constatação serve para reforçarmos aqueles mecanismos que nos permitiram sair das cavernas e trocar os tacapes pelo smartphone. Há espaços de sobra para extravasar, aplacar ou compreender (para controlar) os instintos de cada um. Aí entram a igreja, as arenas esportivas, os tribunais, as cadeias, a filosofia, a arte. Cada indivíduo segue responsável pelo que faz. Mas a sociedade, unida e consciente do impacto que causa ao afrouxar os controles sobre o que é moralmente ou legalmente condenável, pode criar um ambiente menos propício à violência.

Imagem> Anemone123 por Pixabay

WhatsApp
Junte-se a nós no WhatsApp para ficar por dentro das últimas novidades! Entre no grupo

Ao entrar neste grupo do WhatsApp, você concorda com os termos e política de privacidade aplicáveis.

    Newsletter


    Publicidade