Quando entrei na faculdade de jornalismo, tempos de internet dependente de linhas telefônicas conectadas ao computador, todo estudante de jornalismo e profissional em começo de carreira ouvia o mesmo conselho: leia Ernest Hemingway. Em geral, a dica vinha acompanhada de observações sobre o estilo do autor (sem floreios, objetivo, econômico nos adjetivos e preciso na escolha das palavras mais adequadas para cada situação) e de uma lista de obras essenciais, encabeçada pelos clássicos O Velho e o Mar, Por Quem os Sinos Dobram?, Adeus às Armas e Paris é uma Festa.
Nossa maior preocupação era aprender a apurar e redigir – e Hemingway era herói para muitos. Além do estilo de escrita, tão difícil de copiar em sua aparente simplicidade, tinha a coragem e o espírito aventureiro almejados pelos candidatos a repórter. Esteve na Primeira Guerra Mundial como motorista de ambulância e escreveu da frente de batalha da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra mundial. Enfrentou fascistas e nazistas e conviveu em Paris com os grandes nomes da cultura ocidental do pós-guerra.
Em atitudes hoje inaceitáveis, mas não condenadas à época, caçou animais de grande porte na África e frequentou touradas. Andava por aí atento a tudo e a todos – e transformava o que via em ótimas histórias. Contribuiu para romantizar as “corridas de touros” em Pamplona e retratou os toureiros como homens extremamente charmosos e destemidos (O verão perigoso não está na lista de clássicos do autor, mas vale muito a leitura). De uma simples pescaria, fazia um vencedor de Nobel da literatura.
Hoje os futuros jornalistas têm preocupações extras – para além da necessidade básica e essencial de saber apurar e redigir boas histórias. Os jovens (coitados!) precisam saber contar boas histórias, mas agora devem fazer isso sem serem superados pelo chat GPT e outras traquitanas que surgem a cada minuto (ps… a bem da verdade, os mais velhos enfrentam o mesmo dilema).
Duvido que alguém tenha uma receita pronta da melhor forma de conviver nesse novo mundo. Mas uma dica é válida: leiam Ernest Hemingway.
Há pouco surgiu por aqui um livro que reúne parte do trabalho jornalístico do escritor. Como chegamos a Paris traz 77 artigos escritos para a imprensa ao longo de mais de 30 anos. São textos que o próprio Hemingway não considerava ideais – escritos para cumprir prazos, não têm o acabamento literário pelo qual ele queria ser reconhecido. Mas não importa.
Mesmo sem o acabamento que exigia, Hemingway ainda é melhor que a maioria de nós. Na cobertura de grandes acontecimentos ou em ocasiões quase banais, o autor mantém muito de seu estilo e ainda mostra outras características essenciais para jornalistas: saber ouvir e olhar com atenção para a realidade. Hemingway é curioso e interessado por aquilo que vê e ouve.
Mas vai além. O termo não é dos mais modernos, mas serve: Hemingway tem repertório – e isso faz toda a diferença. É capaz de falar de literatura, no necrológio de Joseph Conrad; sobre a melhor isca para pesca de carpas ou sobre o calibre de morteiros usados com maestria pela artilharia chinesa na Segunda Guerra. Ao comentar a movimentação militar japonesa na Segunda Guerra, avança sobre uma análise do fluxo de suprimentos de borracha e minérios ao próprio Japão e a outros países. Traça contextos, descreve personagens, fala da própria experiência (quando isso enriquece a história).
O estilo literário, claro, está lá. Ao analisar o exército chinês, diz: “Conhecem o ofício de soldado, marcham rapidamente, comem pouco em comparação com os soldados europeus, não temem a morte e têm a fina flor das qualidades desumanas que fazem de um homem um bom soldado”.
Como chegamos a Paris mostra um jornalista informado, curioso, atento e sensível aos aspectos humanos das histórias que conta. O Chat Gpt não faz isso. Ao menos por enquanto.