A sugestão da semana é de um livro que ainda não li: Maldito Invento dum Baronete: uma breve história do jogo do bicho, lançado no há pouco no Rio de Janeiro. O justo, para compensar a indicação de compra feitas às cegas, seria a coluna vir ilustrada por belas fotos do seu autor nas praias ou em uma feijoada com caipirinha em um badalado boteco carioca depois de um fim de semana festejado com pompa e circunstância às custas da editora Mórula. Mas (infelizmente) não se trata do famoso jabá. Escrevo da sala de casa, depois de ter feito um café fraquinho, ao som da furadeira do vizinho e vigiado pelo gato que espera petiscos. A inspiração não vem das ondas de Copacabana, mas da sabedoria do Sílvio Santos.
Não li (ainda), a nova obra do Luiz Antonio Simas, mas sei que dá para esperar algo que vale a pena conhecer quando ele é o autor de qualquer livro sobre assuntos ligados à história do Rio de Janeiro e à cultura popular do brasileiro. O jogo do bicho, mesmo mantido à margem da lei, é uma instituição carioca que se espalhou por todo o País. Quantas crianças (eu fui uma delas) não se tornaram cúmplices da contravenção ao passar diariamente pela banca da esquina para “fazer uma fé” no palpite de algum parente. A placa do carro que passou raspando termina em 01? Avestruz na cabeça! A tumba do parente próximo recém pranteado é a 16? Leão! A plaquinha na mesa do restaurante onde deu um quebra pau qualquer é a 20? Tudo no Peru. Todo número pode ser um sopro divino da sorte para o dinheiro fácil.
O que credencia a indicação do Maldito Invento são outros livros (esses eu li) do Simas. Sempre com muito talento, humor e a capacidade de olhar o mundo sem preconceitos, ele é mestre em explicar a rica experiência cultural do brasileiro. Fala do boteco, do morro, da roda de samba, do terreiro, do campo de várzea, da umbanda e reflete sobre a força e a importância das pessoas que vivem nesses cenários. Esse ponto de vista faz toda a diferença.
Ao tratar do carnaval, por exemplo, recupera e destaca o papel do samba como elemento de resistência da cultura negra no País. Ele não ignora a intromissão de elementos estranhos a essa cultura, como as socialites e artistas de TV e os bicheiros que usam o espetáculo para conquistar notoriedade ou dar um lustre na imagem arranhada por atividades ilegais. Eles estão lá, mas fora do foco principal. A luz está nas baianas, nos toques de tambor que reverberam a umbanda e nos grandes personagens das rodas de samba cariocas.
Ao falar das escolas de samba, uma das suas Crônicas Exusíacas e Estilhaços Pelintras explica:
“As escolas precisam, sem saudosismo, se voltar mais para aqueles que – alijados das quadras e do sambódromo pela lógica exorbitante dos preços e pelo conluio entre agências de turismo, ligas, etc – disputam sofregamente um espaço nas arquibancadas precariamente construídas na armação do canal do mangue. Como fazer isso e, ao mesmo tempo, atender as demandas da indústria do turismo é o x do problema”.
Nesse e em diversos outros trechos, Simas dá a luz gente que normalmente fica escondida e esquecida. A pelada no campinho (e jogadores que nunca chegaram ao estrelato) foram tratados com o respeito que merecem no ótimo Ode a Mauro Shampoo. O Corpo Encantado das Ruas fala de samba, gastronomia, futebol, boteco, umbanda, folclore e outras manifestações culturais marcantes do Brasil. Vez ou outra, o autor não consegue manter o otimismo. Mas sempre reforça a crença de que algo pode ser feito para melhorar e rebate qualquer tipo de conformismo: “Não vejo saída para a cidade e o País fora das lutas, saberes e fazeres cotidianos das mulheres e homens comuns, aqueles que dão sentido à aventura de prosseguir no escuro”.
O jogo do bicho é controverso – e já foi tema de um livro que também vale a pena ser lido: Avestruz, Águia e Cocaína, de Valério Meinel. O jornalista mostra como os contraventores “diversificaram” os negócios com o tráfico de drogas e adotaram a violência como prática comum. O crime organizado é o lado perverso e indissociável do jogo.
Em seu novo livro, Simas por certo não ignora ou apaga essa história. Mas, é fácil supor, a partir de sua forma de explicar o mundo, ele deve abordar o assunto por outros ângulos, que ajudam a explicar como uma prática considerada contravenção persiste ligada à cultura popular há tantos e tantos anos. Talvez finalmente eu entenda porque senhorinhas respeitáveis e acima de qualquer suspeita chamavam os filhos da vizinhança, falavam de seus sonhos (os sonhos de bicho, não os freudianos) e faziam crianças se tornarem cúmplices de contravenção para ir até o bar da esquina anotar seus palpites.