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Coluna Jean Caristina | Etna e o criado-mudo: quando a inocência vira raiva
27 de Novembro de 2019

Coluna Jean Caristina | Etna e o criado-mudo: quando a inocência vira raiva

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Por Jean Caristina 27 de Novembro de 2019 | Atualizado 27 de Novembro de 2019

A Etna, empresa de móveis, decoração e utilidades domésticas, lançou na semana em que se comemora o Dia da Consciência Negra vídeo que explica o porquê do nome “criado-mudo”, cuja origem remonta o período escravagista.

Na tentativa de passar mensagem antirracista em importante data de conscientização da população para a igualdade racial, a empresa recebeu duras críticas nas redes sociais. E não seria para menos. Esse tipo de proposta sempre soa oportunista, apesar de uma aparente boa intenção.

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É que não há nada mais incômodo no processo de esquecimento da violência do que ficar ‘lembrando’ dela, em especial quando tal recordação tem finalidade publicitária ou, o que é pior, quando nem se trata realmente de uma lembrança.

O inofensivo móvel de dormitório (criado-mudo) sempre foi usado sem que se tocassem – ou, no caso, se abrissem – em feridas. Havia, até a proposta da Etna, uma inocência bastante saudável, uma ignorância quanto a um fato histórico que não deixa de ser lamentável, mas que não representava nenhum incômodo para a sociedade. Pelo menos não, até a Etna se apropriar de uma certeza incontestável de que o tal móvel representa uma potencial ofensa à igualdade racial. 

Nem mesmo os entrevistados (aparentemente não eram sequer atores) do filme – todos negros – sabiam a origem do significado da palavra criado-mudo, isto é, as supostas vítimas de racismo não sabiam que eram vítimas de racismo, seja porque não havia racismo em se chamar o movelzinho de criado-mudo, seja porque não se sentiam vítimas.

O surgimento do criado-mudo

Por volta de 1820 os escravos ficavam ao lado da cama de seus senhores para atendê-los quando necessário. Eram seus criados. Os senhores achavam incômodo o fato dos criados falarem durante a noite, o que, evidentemente, atrapalhava seu sono, e isso fez com que muitos tivessem suas línguas decepadas ou fossem castigados. Para acabar com o problema, foram construídos pequenos móveis que servissem de apoio aos senhores, substituindo o criado humano pelo móvel batizado de criado-mudo.

 

Afinal, o que deu errado?

O vídeo é bonito, bem produzido. Não se esperava menos de uma empresa da envergadura da Etna. O roteiro parece fazer sentido histórico, o momento de seu lançamento era adequado, mas algo soou estranho: houve uma certa dose de hipocrisia e oportunismo.

É bem verdade que a comunicação publicitária tem assumido cada vez mais a função de educar a população quanto a questões relativas a igualdade racial, liberdade de opção sexual, empoderamento feminino, forma de tratamento das meninas e outras. É como se as marcas não pudessem mais deixar de se posicionar. Nunca a neutralidade foi tão criticada.

Mas o discurso publicitário é recheado de contradições estranhas. Por exemplo: alguém se incomodava, de verdade, em chamar o pequeno móvel do lado da cama de criado-mudo? Nem mesmo os personagens do filme da Etna sabiam qual o motivo de seu significado. E antes de lerem o texto entregue a eles não sentiam nenhum repúdio ao inocente movelzinho.

Soou como o desavisado que conta para a criança que ela é adotada antes que seus pais possam contar a ela de forma menos traumática.

A Etna “mexeu numa ferida” que não existia. No processo inconsciente de nominar o móvel de criado-mudo duvida-se que as pessoas olhassem para ele e imaginassem ter, ali, a presença de um escravo. As feridas que continuam abertas são as da desigualdade de oportunidades, de tratamento diferenciado pelos setores público e privado, não a de um movelzinho que há 200 anos foi criado em substituição ao trabalho humano.

Há, obviamente, uma proposta de empoderamento do negro, numa sociedade que ainda é evidentemente racista e preconceituosa. Mas a música de fundo, com sons de percussão relembrando os ritmos africanos, não ajuda muito no processo de desconexão do negro atual de seus ancestrais do longínquo continente. Pelo contrário. A proposta volta 200 anos na história, a um tempo em que os pais, avós e, talvez, bisavós dos personagens do filme nem eram nascidos, nunca ouviram sequer o som de um “atabaque” ou de um “djembé”, e sempre chamaram os tais móveis do lado de suas camas de criado-mudo sem nenhuma restrição.

A proposta da Etna transformou costume e inocência em ódio e raiva, que nunca existiram antes. Se há uma beleza na proposta, uma ideia de se erguer a bandeira da igualdade, isso, infelizmente, chafurdou diante de uma enorme quantidade de críticas que puseram em dúvida se o criado-mudo realmente é o grande problema enfrentado pelos negros e a razão de haver, ainda, tamanho preconceito.

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