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Coluna Leitura | O erro de Chico Buarque
16 de Agosto de 2022

Coluna Leitura | O erro de Chico Buarque

Uma lição que podemos aprender com os equívocos do caso Saco e Vanzetti

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Por Rogério Kiefer 16 de Agosto de 2022 | Atualizado 22 de Agosto de 2022

Garoto bonito, o Francisco, filho do Sérgio e da Maria, estudante de arquitetura, não se tornou o Chico por acaso. Imagine a quantidade de talento e trabalho investidos na criação de Vai Passar, João e Maria, Futuros Amantes, Eu te Amo, entre tantas outras. Capaz de usar o termo escafandristas em uma canção de amor, o que nem o Vinícius de Moraes ousou fazer, ele também dá lições de sociologia em versos.

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Lançada em 2017, As Caravanas fala de um dia de “sol de torrar os miolos” no Rio de Janeiro. Vindos do subúrbio e da favela, homenzarrões bem-dotados assustam “a gente ordeira e virtuosa”. A reação dos cidadãos de bem, nada surpreendente, vem em coro:

“Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”.

O “espírito do tempo” varia ao longo das décadas e séculos e de sociedade para sociedade. Hora é possível dizer que predominam ideias como vida em comunidade, consideração ao próximo e solidariedade. Em outros momentos, ganham prioridade o egoísmo, a intolerância e certa histeria. Hoje, anda em alta o individualismo, como atestam a proliferação de almofadinhas especializados em auto ajuda financeira e o culto ao “fique rico ou morra tentando, não importa o que isso custe”.

A sociedade do “cada um por si coletivo” é medrosa e está disposta a cometer equívocos em nome da defesa de uma realidade própria. Uma visão distorcida que embaralha e trata como coisas semelhantes o “bem comum” e o “meu bem individual” de cada um. O resultado pode ser a intolerância a tudo aquilo que coloca em risco a estabilidade. Quando aliada ao poder e à certeza da impunidade, essa mistura é perigosa.

 

Ou doido sou eu que escuto vozes

No início dos anos 1920, o espectro do comunismo aterrorizava o mundo. Nos Estados Unidos do pós-guerra, a crise econômica era severa, o desemprego crescia e a insegurança sobre o futuro era grande. Nesse contexto, um caso judicial da época exemplifica o potencial destrutivo do medo raivoso e intolerante.

Imigrantes italianos, os operários Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti eram homens fáceis de encaixar em uma generalização. Em tempos de ebulição de ideias anarquistas e socialistas, com estrangeiros ameaçando os empregos dos americanos natos e a estabilidade do sistema, eles eram os arruaceiros, os indivíduos capazes de por em risco a ordem social.

Mereciam o pior.

Acusados do assassinato de um vigilante durante um assalto, os homens foram julgados e postos no corredor da morte. O caso chamou a atenção de muita gente e virou um livro curto e muito sensível de Howard Fast, que depois conquistaria visibilidade ainda maior com Spartacus.

Fast acompanha os passos de advogados de defesa, fala com respeito e ternura da família dos presos, revela a pouca disposição do Governador para analisar o pedido de clemência dos condenados e mostra a distinção de Saco e Vanzetti para enfrentar os momentos mais apavorantes de suas vidas.

“Saco & Vanzetti” mostra assim a polarização entre homens de bem, defensores da execução, e anarquistas, comunistas e baderneiros, que tomam praças sob forte vigilância policial para protestar. O mais grave, como revela o autor, é que o processo foi cheio de falhas. A balística não comprovou que a arma do crime era dos acusados. Testemunhas disseram que pelo menos um deles estava distante dezenas de quilômetros do local da ocorrência no momento do tiro. Tudo inútil diante de autoridades que estavam preocupadas em dar um recado e uma punição exemplar a representantes de um grupo que punha em risco o status quo.

Décadas depois, vale acrescentar, os equívocos seriam reconhecidos – e os operários, declarados reabilitados pelo Govenador de Massachusetts em 1977. Uma reparação de pouca utilidade, já que ambos não escaparam da cadeira elétrica.

Chico diz em As Caravanas:

“Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana”

Chico é gênio, mas também erra. Gente insana é o que não falta por aí.

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