- Um homem vai ao quarto do filho desejar boa noite e percebe que o garoto está tendo um pesadelo.
Ele acorda o menino, que demonstra muito medo, porque sonhara que a tia Suzana havia morrido. O pai, então, acalma o filho, assegurando que ela estava muito viva.
“Ainda há pouco eu conversei com ela”.
No dia seguinte tia Suzana morre.
Semana depois, ele volta ao quarto do filho, que demonstrava estar tendo outro pesadelo. Acorda o menino, que, assustado, diz que sonhou com a morte do avô.
De novo, o pai procura acalmar o filho:
“Vovô está bem, filho, está lá na sala vendo TV.”
No dia seguinte o avô morre.
Semana depois, homem no quarto do filho, filho novamente com pesadelo. Desta vez, o menino diz que sonhava com a morte do pai.
Este consola de novo o filho. Diz que está tudo bem com ele, mas fica preocupado. Nem dorme direito.
Dia seguinte, marejado mas aliviado e cheio de saúde, vai para o trabalho. De volta pra casa, encontra a esposa muito triste. Quis saber o que havia, ela desabafou:
“É meu chefe. Faleceu assim que chegou ao escritório.” (Causo contado por Som Salvador, no aQui)
- Desde a tragédia do Rio de Janeiro venho tentando escrever sobre o assunto, sem conseguir. Estava impactado demais. Enquanto tentava vencer a barreira imposta pelo meu estado de espírito, li, vi e ouvi um monte de gente opinar sobre o assunto.
Professores, médicos, psicólogos, filósofos, estudiosos do fenômeno da violência, opinaram.
Não sou nada disso (exceto estar professor) , mas quero dar o meu pitaco. Senão, não durmo. Quem sabe contribui com alguma coisa.
De cara, vou dizendo: pra mim, cada um de nós tem um pouco da culpa pelo acontecido.
- Saio de casa diariamente, e no caminho vou cruzando com pessoas.
A maioria, moradores, como eu, do mesmo prédio, é incapaz de responder ao meu cumprimento.
Simplesmente passam por mim. Ou melhor: através de mim.
- Tenho pra mim que aí começa tudo. Quando ignoramos nossos vizinhos e o tratamos como ilustres desconhecidos, como coisas, nós os estamos reduzindo a figuras sem rosto, sem sentimentos, sem nada. Como coisas.
5.Lembro-me agora, à medida que escrevo, de quando tentei ser gentil
com uma senhora, no centro da cidade. O trânsito estava intenso, ela
não conseguia atravessar a rua. Fiz o que qualquer pessoa civilizada faria: parei o carro para que ela atravessasse. Ao invés de agradecimento, recebi um palavrão. Dela.
- Outro dia, no prédio onde moro, eu me aproximava do elevador no mesmo instante em que dois jovens estavam saindo. Quando um deles percebeu que eu me aproximava, fechou a porta com violência. Riu quando passou por mim
- Vejo todo dia na Universidade. O aluno chega, vai direto para a carteira e começa a conversar com o colega, sem dar a menor bola para a fala do professor, que naquele momento leciona. Se a aula ainda não começou, a mesma coisa. O mesmo desrespeito. A mesma frieza de tratamento, a mesma desatenção com aquele que devia considerar mestre.
- É isso o que estamos vendo: a coisificação de tudo, nós inclusive. E
Quando viramos coisas, nossa vida passa a valer muito pouco. Ou nada.
Tenho pra mim que se as pessoas que com aquele pobre diabo se relacionavam, não o tratassem como coisas, dessem um pouco de atenção a ele, teriam percebido e levado a sério a mudança por que ele estava passando. E, preocupados, tomado providências.
Fico pensando: quantos, em torno de nós, só precisam de um bom dia, um boa tarde, um boa noite, um oi, um sorriso, para se sentir melhor? E quantos empurramos para o abismo, por se sentirem simples coisas?
Se déssemos um pouco de atenção aos que nos rodeiam, talvez, ao contrário do pai do menino dos pesadelos, agiríamos a tempo poderiam evitar uma tragédia.