Como ter esperança no futuro e aproveitar oportunidades que surgem nos momentos de crise? Por meio da conexão. Criado para ser uma alternativa de aprendizado e renda durante o necessário distanciamento social para minimizar a pandemia, o CONECTE-SE é um programa louvável do Centro Cultural Escrava Anastácia (CCEA) que oferece cursos na modalidade virtual para jovens de comunidades empobrecidas de Florianópolis e que tiveram uma pausa nos cursos ofertados presencialmente pela instituição. Atualmente o projeto conta com 119 inscritos e o objetivo é atender 250 jovens até agosto.
A iniciativa surgiu para substituir, temporariamente, o Rito de Passagem, projeto do CCEA que apoia o desenvolvimento de jovens de 14 a 24 anos. Além disso, diante das demandas sociais por emprego, renda e saúde ampliadas em razão da Covid-19, os jovens em isolamento social estão afastados da escola e dos demais equipamentos sociais que os estimulam e dão acesso a recursos como educação e emprego.
“Propomos alternativas de aprendizagem e desenvolvimento para que os jovens tornem-se protagonistas de suas vidas. Como o projeto conta com um programa de transferência de renda emergencial, consideramos que eles tenham maior engajamento com suas comunidades”, afirma Jorge Luiz D’Ávila, coordenador do CCEA.
As atividades são realizadas virtualmente e incluem cursos de parceiros como o Senai e Senac. A curadoria é da Light Source, consultoria especializada em gestão estratégica e transformação cultural nas organizações, que considerou aspectos da Psicologia Positiva (talentos, resiliência, felicidade e realização de vida e profissional) para organizar o programa em três dimensões-chave: autoconhecimento, aprendizagem e cidadania.
“O CONECTE-SE oportuniza tanto a aprendizagem e a preparação para o pós-pandemia, quanto busca apoiar os participantes com subsídio financeiro para que colaborem com suas famílias, comunidade e com suas próprias necessidades neste momento. Esperamos que os jovens exercitem resiliência suficiente para, apesar das circunstâncias, persistam na aprendizagem e mantenham-se conectados e preparados para a retomada da economia e das oportunidades”, diz a psicóloga e empresária Léia Wessling, diretora da Light Source.
Para além do aprendizado, o propósito do projeto é impactar os jovens a partir da confiança que irão construir em si mesmos ao longo das trilhas de desenvolvimento para delinear seus projetos de vida — no agora e no futuro próximo.
“Por projetos de vida entendemos estudos, vida profissional e social, sonhos e esperanças em algo que cabe a eles compreender e buscar. A nós, sociedade, cabe zelar para que as oportunidades possam existir e que os jovens possam desenvolver todo seu potencial, garantindo que não fiquem à margem e possam ser adultos com efetiva participação social”, detalha a administradora Silvana Paggiarin, segunda tesoureira e voluntária do CCEA há quatro anos.
Três etapas, três trilhas de aprendizagem
O programa está organizado em três etapas. A primeira, realizada em maio, propôs o Autoconhecimento. Foi um período em que os participantes receberam informações sobre suas maiores habilidades e talentos e também orientações sobre como utilizá-las em suas escolhas de vida e profissional.
A segunda etapa será realizada ao longo de junho e julho com as Trilhas de Aprendizagem. Cada participante, a partir do autoconhecimento, pode escolher três trilhas diferentes: digital, serviços e indústria. Em cada uma das trilhas, diversos cursos são disponibilizados com carga horária de 20 a 40 horas. Ao final de cada um, o/a jovem realiza uma avaliação.
A terceira e última etapa é pautada na ideia de Cidadania e Direitos Humanos. Em agosto, será oferecido um curso com 70 horas de duração, com avaliação e certificado, sobre o papel de cada um/a e seu protagonismo junto à família, comunidade e na busca por acessos a serviços e direitos sociais e para o exercício da cidadania.
Renda emergencial
O programa conta com um fundo emergencial, com captação ativa por meio de investidores sociais engajados. Os participantes do CONECTE-SE podem receber uma renda emergencial, conforme participação no programa e disponibilidade do fundo. O propósito é que os jovens, por meio do desempenho nos cursos, possam ajudar a família a enfrentar o atual momento.
“Muitos dos participantes estão recebendo ajuda do CCEA com cestas básicas, produtos de higiene e limpeza. Mas ainda falta para compra de medicamento, do gás, pagar uma conta de energia, água e para qualquer outra emergência”, enumera Jorge D’Ávila.
Para a voluntária do CCEA, Silvana Paggiarin, a renda emergencial é também importante para romper com a lógica de que buscar e produzir conhecimento não é trabalho, compreendendo que trabalho é tudo o que contribui para a produção de riqueza. “É importante que os jovens do projeto recebam um incentivo financeiro pelo tempo dedicado aos estudos, à busca de autoconhecimento, de conhecimento específico sobre uma forma de trabalho e sobre como está organizada a sociedade onde ele/ela é o cidadão. Dessa forma, inicia-se dentro do núcleo familiar a compreensão de que o jovem precisa investir tempo na sua preparação, para que possa exercer uma função laboral de acordo com as suas potencialidades.”
CCEA: acolhimento, educação, justiça social e racial
O Centro Cultural Escrava Anastácia tem suas raízes no Monte Serrat, no Maciço do Morro da Cruz, Centro de Florianópolis. Nasceu do movimento comunitário com o propósito de enfrentamento pacífico da criminalidade, em meados dos anos 1990. Desenvolve um trabalho voltado para a educação, fortalecimento de vínculos, inserção social e laboral, assistência social, cultural e esportiva e acolhimento institucional, principalmente de jovens de bairros empobrecidos da Grande Florianópolis. Integra a Rede IVG (Instituto Padre Vilson Groh).
Além de projetos como o Rito de Passagem e Jovem Aprendiz, desenvolvidos no contraturno escolar na sede da instituição (bairro Balneário, região continental da Capital), mantém a Casa de Acolhimento Darcy Vitória de Brito. Localizada no Monte Serrat, no mesmo local de origem do CCEA há cerca de 10 anos, a Casa oferece acolhimento institucional para 20 crianças e adolescentes entre 0 e 18 anos, conforme princípios, diretrizes e orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Dona Darcy é uma das fundadoras do CCEA e, junto com Seu Teco, ainda atuam na comunidade.
“Enquanto tiver um só jovem morto pela polícia ou em confrontos entre traficantes em Florianópolis, já é sinal de que a sociedade florianopolitana está falhando em alguma coisa. Parafraseando: “Vidas jovens importam!” — enfatiza Silvana Paggiarin.
Para a voluntária, uma cidade cuja atividade econômica principal é focada na tecnologia não pode abdicar de absorver o capital humano que já possui, no caso, os jovens que já moram aqui:
“Uma cidade como Florianópolis, que conta com muitas universidades (públicas e privadas), com o Sistema S disponível e organizado, e que é referência em tecnologia e qualidade de vida para o Brasil, pode oferecer aos jovens e suas comunidades muito além do que as atividades básicas e operacionais. Uma cidade criativa deve incluir suas comunidades e seus jovens na aprendizagem digital, nos serviços vinculados à economia criativa (arte, música, cultura), nas tendências da indústria 4.0 e nos serviços de hotelaria e turismo que são vocacionais da região.”
Nesse sentido, o projeto CONECTE-SE torna-se um ambiente virtual fértil para fomentar discussões sobre racismo e desigualdade.
“Em Florianópolis, como em quase todo lugar do mundo, ainda existe sim racismo, por mais velado que seja. Olhando para a atuação de toda a Rede IVG, sinto que estamos avançando bastante, mas ainda tem muito a se fazer”, pondera o coordenador do CCEA, Jorge D’Ávila.
“Na minha opinião, a forma de promover justiça social e racial passa pela participação política. Mas começa também por conhecer as causas do modelo de organização da sociedade, a história. Disseminando-se esse conhecimento, adquirem-se mais condições e sustentam-se as motivações para a participação popular e para a construção de políticas públicas para o enfrentamento do racismo e das desigualdades”, finaliza Silvana.
As dimensões-chave do CONECTE-SE: autoconhecimento, aprendizagem e cidadania
Entenda os conceitos de cada uma das dimensões-chave do programa, criado pela psicóloga Léia Wessling, diretora da Light Source:
1. Autoconhecimento: autoconhecimento promove consciência e dá condições de planejar aprendizagens e planos de vida e trabalho. Oportunizar o autoconhecimento é chave para a transição do jovem para as etapas da vida adulta e para que perceba suas forças (e existem independentemente das limitações da sua vida econômica e social).
2. Autoconhecimento + Aprendizagem: aprender sobre áreas com as quais o jovem tenha afinidade e interesse amplia muito seu desempenho e suas próprias oportunidades. A relação entre quem você é (sua identidade) e o que você é capaz de fazer (aprendizagem e trabalho) são dois elementos importantes para a realização de vida e profissional.
3. Autoconhecimento + Aprendizagem + Cidadania: a cidadania é um exercício que integra a autoestima, a confiança em suas próprias capacidades e o protagonismo para buscar na relação social (seja pública ou privada) as oportunidades. Cuidar de si, cuidar da sua família, cuidar da comunidade, empodera o jovem.