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A representação instaurada pelo CONAR contra o comercial dos 70 anos da Volkswagen no Brasil, que colocou Elis Regina ao lado de sua filha, Maria Rita, foi arquivada, ou seja, a Volkswagen e a Agência AlmapBBO foram absolvidas de uma possível violação ética.
A decisão não foi unânime. O colegiado decidiu pela licitude do comercial por 13 votos a 7. Não foi um empate, mas não foi uma vitória acachapante, convenhamos!
Em fatídica nota publicada em seu site, o CONAR informou a sociedade de que não encontrou violação ética que justificasse a sua sustação.
E errou.
O que motivou a instauração da Representação?
Consumidores formularam reclamação junto ao CONAR alegando possível falta de ética no uso de ferramentas de inteligência artificial para trazer a cantora Elis Regina, morta em 19/01/1982, “de volta à vida”, dirigindo uma Kombi, marca registrada da Volkswagen entre as décadas de 1970 e 1980.
A decisão do CONAR, ponto a ponto
1. Quanto ao possível desrespeito ético por uso da imagem da cantora
Em nota divulgada em sua página, o CONAR assim se pronunciou:
O colegiado considerou, por unanimidade, improcedente o questionamento de desrespeito à figura da artista, uma vez que o uso da sua imagem foi feito mediante consentimento dos herdeiros e observando que Elis aparece fazendo algo que fazia em vida.
A 7ª Câmara do CONAR considerou que não houve desrespeito à figura da artista, por ter havido consentimento dos herdeiros.
Ora, esta questão nem deveria ter sido colocada em pauta, dado que o assunto diz respeito a direito de propriedade, do qual o CONAR não tem competência para julgar. Tampouco a sociedade tem o direito de reclamar, pois os direitos sobre a imagem e a obra de Elis Regina só podem ser reivindicados por seus herdeiros.
O CONAR errou ao esbarrar em questão que não lhe competia, devendo o colegiado ter se declarado incompetente para decidir sobre os chamados direitos patrimoniais disponíveis, que são inerentes ao mundo jurídico e pertencem exclusivamente a seus herdeiros.
Quanto ao argumento de que Elis aparece “fazendo algo que fazia em vida”, é difícil entender o que o CONAR quis dizer. Cantar, dirigir uma Kombi ou ser garota-propaganda de uma montadora de veículos. O que, afinal, ela fez no comercial que fazia em vida? E ademais, qual seria o problema de aparecer fazendo algo que NÃO fazia em vida? A violação ética não está aí. Avancemos.
2. Quanto ao uso de inteligência artificial
A segunda parte da nota é ainda mais assombrosa que a primeira. Foi assim redigida:
Já no tocante à informação sobre o uso da ferramenta, indicando ser conteúdo gerado por inteligência artificial, os conselheiros consideraram as diversas recomendações de boas práticas existentes acerca da matéria, bem como a ausência de regulamentação específica em vigor, e acabaram por concluir, por maioria de votos (13 x 7), também pelo arquivamento da denúncia, determinando o registro de que a transparência é princípio ético fundamental e que, no caso específico, foi respeitada, reputando que o uso da ferramenta estava evidente na peça publicitária.
Aqui precisamos entrar em conceitos mais técnicos do que um simples “o uso da ferramenta estava evidente na peça publicitária”.
O art. 23 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP) determina que os anúncios não devem abusar da confiança do consumidor e não se beneficiar de sua credulidade.
Houve quem acreditou que a mulher que dirigia a Kombi era uma cantora, e apenas isso. Se o indivíduo não sabe quem foi Elis, para ele tanto faz como tanto fez. Houve quem, sabendo que se tratava de Elis Regina, acreditou que um dia ela cantou “Como Nossos Pais” ao volante de uma Kombi.
Veja, caro leitor, que a publicidade não é um produto destinado a um grupo de intelectuais. Ela vai, literalmente, do Oiapoque ao Chuí, para públicos de todas as classes, origens e culturas. A tentativa de se atribuir a qualidade de “arte” a um comercial é um esforço inócuo, pois ao fim e ao cabo, o interesse por trás de toda e qualquer peça publicitária é vender! Vender um produto ou serviço ou vender uma marca, tornando-a lembrada, relevante.
E, sendo peça publicitária cujo intuito final é vender, abusou da confiança e da credulidade do consumidor, fazendo-o parecer “bobo” diante da tela da TV, acreditando no que ali estava sendo apresentado, seja por conhecer, seja por desconhecer Elis Regina. Houve, portanto, violação ao at. 23 do CBAP.
3. Uma violação que reputo mais grave ao CBAP
Não bastasse ter usurpado a confiança do consumidor (violação ao art. 23 do CBAP), a peça coloca a falecida como garota-propaganda de um veículo automotor, embora não haja registro de que Elis Regina tenha dirigido uma Kombi em seus 36 anos de vida.
Mas se não fez em vida, fez agora na sua “pós-vida”, induzindo os consumidores a acreditarem que ela realmente dirigiu. Como uma influencer vinda do mundo dos mortos, a garota-propaganda foi, sim, colocada no banco de um veículo automotor para representar uma marca.
Se estas considerações causarem algum tipo de infortúnio, substitua o carro por uma moto ou um caminhão. Ou melhor, substitua por um paraquedas. Será que a Elis Regina, pulando de paraquedas e cantarolando “Como nossos pais” seria crível? E porque é tão assimilável quando ela dirige uma Kombi? Ah, porque a Kombi era um veículo da moda na época em que ela viveu. Motos, caminhões e paraquedas também eram!
Percorra, por não mais do que cinco minutos, os julgados do CONAR dos últimos anos e veja a quantidade de influenciadores que tiveram suas postagens julgadas como antiéticas por ausência de veracidade. Já são tantos os casos que a população parece nem se importar mais; tampouco o CONAR parece demonstrar forças para combater os milhares de posts, reels e stories de influenciadores que poluem as redes vendendo coisas que não usam ou anunciando coisas que não são o que são.
Mas a Elis Regina, a garota-propaganda post mortem, dirigir um carro, uma moto, um caminhão ou um avião é apenas licença poética! Ah, faça-me o favor! Sua aparição fazendo algo que não fazia em vida viola o dever de veracidade, e torna seu testemunhal passível, sim, de contrariedade.
O Anexo Q do CBAP trata dos testemunhais, atestados e endossos. O item 2 deste Anexo especifica o que é testemunhal prestado por pessoa famosa: “É o prestado por pessoa cuja imagem, voz ou qualquer outra peculiaridade a torne facilmente reconhecida pelo público”. Portanto, testemunhal é algo dito ou mostrado por alguém, famoso ou não, ratificando a qualidade da coisa anunciada.
No item 4 do Anexo são apontadas as recomendações ao uso de testemunhais feitos por pessoas famosas. O texto é o seguinte:
Por se reconhecer no testemunhal, em qualquer de suas modalidades, técnica capaz de conferir maior força de comunicação, persuasão e credibilidade à mensagem publicitária, este Anexo introduz as seguintes recomendações especiais (…).
a. O anúncio que abrigar o depoimento de pessoa famosa deverá, mais do que qualquer outro, observar rigorosamente as recomendações do Código.
Ao sublinhar a obrigação de se “observar rigorosamente as recomendações do Código”, o CBAP quer dizer que na utilização de pessoa famosa há que se ter um cuidado ainda mais especial, dado o seu poder de influenciar em larga escala.
E, se há que se observar rigorosamente as recomendações do Código, a 7ª Câmara do CONAR deveria ter se atentado ao que diz o art. 27 e seu § 1º, do CBAP, que trata do princípio da apresentação verdadeira, nos seguintes termos:
Artigo 27
O anúncio deve conter uma apresentação verdadeira do produto oferecido
(…)
§ 1º – Descrições
No anúncio, todas as descrições, alegações e comparações que se relacionem com fatos ou dados objetivos devem ser comprobatórias, cabendo aos Anunciantes e Agências fornecer as comprovações, quando solicitadas.
Ora, o dever de apresentação verdadeira não está lá à toa. Há que ser verdadeiro o que se anuncia e as descrições, alegações e comparações hão de ser comprovadas! Responda a si mesmo: há como comprovar que Elis Regina dirigiu a Kombi? Evidentemente que não, pois ela está morta!
Não é minimamente razoável que numa mesma frase da fatídica nota conste que “a transparência é princípio ético fundamental” e que “o uso da ferramenta estava evidente na peça publicitária”. Como assim “estava evidente”, se em momento algum faz menção que se tratava de reprodução por inteligência artificial generativa, de imagem de pessoa morta, e que, portanto, não reproduzia a verdade?
O uso do testemunhal de uma morta, pessoa famosa, torna a influenciadora Elis Regina parte da peça publicitária, ao colocá-la como garota-propaganda de um produto que pretende transmitir ao consumidor a ideia de confiabilidade e, portanto, obriga seus criadores a agirem com transparência e verdade, trazendo ao público informações claras e ostensivas do que viram, para que pudessem separar o joio do trigo, ou seja, saber que se tratava de mera reprodução artificial de um ser humano que já nos deixou.
Finalizando
Não há regulamentação sobre o uso de inteligência artificial em comerciais, e isso é um fato!
Mas, ao que parece, o desrespeito aos mortos não precisa de uma nova regulamentação. Basta aplicar o que já existe: veracidade, transparência, ostensividade, apresentação verdadeira etc.
Acredito, sim, que muito em breve veremos garotos-propaganda gerados por inteligência artificial figurando no comercial de comidas, bebidas, carros, roupas etc. Em casa, assistindo a esses comerciais, estarão os atores, seres humanos de verdade, que perderão seus empregos para as máquinas. Afinal, elas não cobram direitos de imagem, não reclamam de horas extras, tampouco têm problemas de saúde. Máquinas não morrem, não engordam, não envelhecem.
Não espantará ver, em breve, o Ayrton Senna como garoto-propaganda de sandália, o Pelé tomando uma cerveja ou a Aracy Balabanian representando uma marca de depilação a laser. Afinal, tendo o consentimento dos herdeiros, eles estarão fazendo o que faziam (provavelmente) em vida. Não é?