Na fila pra pagar o estacionamento presencio o reencontro de velhos amigos:
— Ô, cara, tu por aqui!
— Ah, galo velho! Como é que tu tá?
— Melhor estraga! Mudei pra fazenda. Lembra de Águas Mornas? Tô cuidando das plantas, fruta direto do pé, leitinho tirado na hora.
— Maravilha!
— Mas o melhor não te contei, chega aqui, o pessoal da fila tá olhando torto.
— Comecei a pintar.
— Pintar?
— É, quadros. Adorava, mas cadê tempo? E a mulher cobrando? E a empresa? Sempre foi meu plano B. Sempre foi.
— É, no fundo todo mundo tem um plano B.
— Agora é uma ideia atrás da outra. Horas e horas entre as tintas. Cara, imagina assim que é tipo como gozar a noite toda. Cada tela em branco é como se uma nova gostosa entrasse peladona na sala.
— Rodolfo, seu tarado.
— Pela vida, cara. Agora tô vivendo, cara.
Foi nessa frase que, aos meus ouvidos, o burburinho do shopping todo ficou emmute. Só os dois continuaram conversando. Mas, pra mim, seu Rodolfo virou tipo aquelas bonecas paraguaias chatas que já vêm com umas cinco frases programadas, e ele travou nas “Agora tô vivendo, cara!” e “Você quer ser meu amigo?”.
Fiquei ouvindo aquilo com cara de Monalisa, com pena dele e de trilhões de pessoas do mundo, porque, gente, ele já tem lá seus quase 90 anos, frouxo, frouxo. Mal andava sem bengala. A essas alturas eu já tava querendo pagar o estacionamento dele e pensando em animar falando algo do tipo: “Ah, mas o senhor ainda dá um belo caldo, hem, Rodolfão?”. O.k., ele pode e deve ser feliz agora. Lindo, isso. Mas me soa tão insalubre tanto delay.
Onde esteve aquele pintor/fazendeiro durante todo esse tempo? Mergulhado no fantástico mundo dos boletos? Fazendo listinhas de ano-novo? Não deixando atrasar o IPTU, o IPVA, cuidando do CNPJ, tendo um AVC, mandando gente pra PQP? Esteve sentado um ano e três meses em uma única reunião cheia de entediados rabiscando seus planos Bs enquanto ouviam as diretrizes do chefe lambido? Missão: bláblábláblá. Valores: blábláblábláblá. Visão: Miopia e astigmatismo. O.k., ele venceu e pode ter sua fazenda. Mas e agora, Rodolfo? Ensina pro seu Rodolfinho a levar a vida de uma forma mais leve, mesmo que isso também signifique certa leveza na conta bancária.
Ainda somos os mesmos e empurramos com a barriga como nossos pais. O plano B é o plano A dos bundas.
*Katiany Pinho, publicitária, é diretora de criação, cronista, roteirista de TV com séries produzidas pela RBS TV de Porto Alegre. É coautora do livro “Convergências Midiáticas ― Produção Ficcional” (Sulina, 2010).