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Coluna Jean Caristina | Não despertem os mortos!
12 de Setembro de 2019

Coluna Jean Caristina | Não despertem os mortos!

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Por Jean Caristina 12 de Setembro de 2019 | Atualizado 12 de Setembro de 2019

 

Podem me chamar de conservador, mas não vejo o menor sentido em ressuscitar artistas mortos para que figurem como garotos-propaganda.

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O respeito aos mortos implica deixá-los onde estão: na nossa memória afetiva.

Recentemente, duas marcas resolveram “desenterrar” da memória afetiva do brasileiro o Mussum, ex-integrante dos Trapalhões, e Dercy Gonçalves.

Mussum participa do comercial da cerveja ‘Cacilds’. A palavra era uma interjeição usada pelo comediante para representar susto, espanto. Outra palavra que ficou famosa por causa de Mussum foi a palavra ‘Mé’, que na gíria representa bebida alcoólica. A cervejaria também contratou seu filho, e na peça comercial aparecem ambos, talvez como forma de avalizar o uso da imagem do pai.

 

 

Dercy Gonçalves, atriz e comediante que se notabilizou por suas participações sempre ácidas e bem humoradas em programas de auditório, foi ressuscitada pela marca de Frango Frito Popeyes, exibida em posto de venda da loja em realidade virtual 3D. Dercy aparece em estande conversando com os consumidores e falando seus tradicionais palavrões.

De comum entre eles: (i) ambos tiveram o aval da família, o que é obrigatório em razão do direito de imagem; (ii) ambos têm destacadas suas personalidades, ou seja, seu palavreado, seus trejeitos, seu comportamento etc.; e, (iii) ambos são personalidades queridas do público.

Por outro lado, há uma distinção entre as campanhas: a cerveja e Mussum têm muito mais lógica do que Dercy e um fast food de frango frito. Talvez neste aspecto (apenas neste!) a utilização do Mussum para falar do ‘Mé’ talvez tenha sido mais adequada.

O ‘retorno’ de algumas personalidades do mundo dos mortos divide a crítica. Mas o que se vê é o aumento do número de apresentações de artistas mortos por meio de alta tecnologia de holograma em 3D.

Celine Dion cantou com Elvis Presley em 2007, em apresentação no American Idol. Em 2012 o rapper Tupac, morto a tiros em 1996, cantou ‘ao lado’ de Snoop Dogg e Dr. Dre. Nos últimos anos há cada vez mais empresas especializadas na reprodução de imagens e sons capazes de trazer de volta qualquer artista.

Michael Jackson e Whitney Houston já fizeram aparições em grandes shows. Mas nada se compara a Roy Orbinson e Maria Callas, dois músicos de enorme prestígio, falecidos, mas que graças à tecnologia do holograma encaram turnês com suas respectivas equipes de músicos, com bilheterias esgotadas por onde passam.

Nem sempre funciona. Justin Timberlake anunciou que usaria o holograma do falecido Prince durante apresentação no Super Bowl, que é a final do futebol americano. Empresário e familiares do artista morto se opuseram. No fim, Timberlake se apresentou sozinho.

Esse fetiche pelos mortos pode ser pelo fato deles terem mais representatividade junto ao público do que os atuais. E isso é um fato. Não há maior unanimidade do que Mussum!

Outro possível motivo é o custo, pois, vivos, talvez não cobrassem o mesmo valor. As famílias, que nem sempre estão em boa situação financeira, acabam por aceitar a proposta.

Ainda, pode ser que haja um certo saudosismo de parte do público, que sente a falta de determinados artistas que já se foram. Alguns consumidores, portanto, acabam apoiando a iniciativa pela possibilidade de ver o ídolo mais uma vez.

A maioria, no entanto, e me incluo nesse grupo, acha um tanto mórbida a ideia de usar os mortos para “vender” para os vivos. Por melhor que seja a tecnologia 3D do Popeyes, por mais parecidos que sejam os atores que interpretaram Mussum e Andy Warhol (pintor e cineasta americano que, 30 anos depois de sua morte, foi reproduzido no intervalo do Super Bowl comendo um lanche do BK), ainda assim é preciso chegar a uma conclusão: eles estão mortos, e isso grita aos nossos ouvidos o tempo todo.

Ao trazer os mortos à vida publicitária temos a impressão de que eles não descansam em paz, que ainda estão em débito com a sociedade. Na cultura cristã comum, o paraíso é o destino da alma. Ao vê-los cantando, interpretando, trabalhando, quebra-se a lógica do descanso eterno e toda uma fantasia que se constrói acerca da vida após a morte cai por terra.

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