Fernanda Delgado é Diretora Executiva da ABIHV-Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde, professora de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas – FGV e da UFRJ e docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Doutora em Planejamento Energético, Mestre em Tecnologia da Informação e em Finanças Internacionais, Fernanda é autora de quatro livros, vários capítulos e inúmeros artigos publicados sobre o setor energético. Além disso, atua como Conselheira do Conselho de Educação da Associação Comercial do Rio de Janeiro.
Devido ao caráter inusitado desta conexão, acho interessante mencionar aqui. Conheci Fernanda num voo entre Brasília e Sampa. Naquele dia, 27 de fevereiro, ela tinha representado a ABIHV nesta audiência pública, no Senado Federal, para “debater o potencial e os desafios para viabilizar a economia de hidrogênio sustentável como fonte renovável de energia no país, de sua utilização na indústria e a sua contribuição para a redução da emissão de gases de efeito estufa”. Embora nossa conversa tenha sido curta, iniciada quando perguntei sobre o livro que ela estava levando (Isso você não aprende em Harvard), ela mostrou-se muito comunicativa e disposta a interagir. Falamos sobre dois contatos em comum, uma ex-executiva da área de óleo e gás e um diretor de empresa catarinense que entrevistei para esta coluna. Rapidamente, pude notar sua riqueza de conhecimentos e disponibilidade em compartilhar. Prontamente, fiz o convite para esta entrevista e ela aceitou. Após isto, trocamos mensagens, e entre suas viagens e reuniões, ela compartilha conosco seus conhecimentos tanto sobre o cenário do setor de energia no Brasil como trata com maestria de aspectos sócioculturais essenciais para todas as carreiras.
Grato por sua valiosa contribuição para nossa coluna de carreira. Sua formação acadêmica abrange áreas como Produção, Tecnologia da Informação, Comércio Exterior e Relações Internacionais. Como essa diversidade de conhecimentos influenciou sua trajetória profissional e sua abordagem para lidar com os desafios do setor energético?
Sempre acreditei muito na multidisciplinaridade porque o mundo é multidisciplinar. O mundo hoje é pandêmico, recessivo, transacional, multidisciplinar. Então, essa transversalidade da minha formação permitiu acessos e diferenciais muito importantes ao longo da minha carreira, e parece que essas formações não se conversam, mas elas todas se conversam. Então, quando eu fui estudar Engenharia de Produção na área de planejamento energético, é porque eu ia falar das relações internacionais do petróleo, tanto que o meu trabalho de doutorado é sobre geopolítica do petróleo. Quando eu fui estudar tecnologia da informação, eu me especializei em empresas que aprendem, learning organizations, justamente pensando aí nas empresas do futuro. E depois, eu tenho a formação também em pós-graduações em Finanças Internacionais e também em planejamento energético. Então, na verdade, tudo isso se conversa, ainda que seja uma área no início na área humana de relações internacionais e depois uma migração para a área de exatas de Engenharia. O profissional de relações internacionais tem um olhar muito mais plural, muito mais abrangente, muito parecido com o que estudamos no planejamento energético integrado. Quando você vai analisar uma estratégia, por exemplo, de eletrificação de frota de veículos urbanos, quando você vai analisar uma estratégia de descomissionamento de plantas a gás natural, de termelétricas a gás natural, você não olha só a matriz energética do país, você olha todas as relações sociais, econômicas que aquele país tem. Então, olhar só a matriz energética te dá uma visão míope do que o país precisa fazer. Então, o planejador energético agrega também conhecimentos de geopolítica, de relações internacionais, de economia, de Economia aplicada, enfim, essa transversalidade me permitiu ter um olhar maior, mais abrangente e ainda assim muito profundo depois de 25 anos de experiência na área de petróleo. A minha entrada na área de renováveis é recente, abraçando a presidência ABIHV, Associação Brasileira de Indústria de Hidrogênio Verde, ainda que eu já tivesse visto isso durante os períodos de mestrado e doutorado. O planejador energético trabalha com todos os vetores energéticos, energia eólica, solar, maremotriz, petróleo, enfim, inclusive o hidrogênio. Então, há 25 anos atrás eu já havia estudado toda a indústria de hidrogênio, todas as potencialidades do hidrogênio, não falavam na época das cores do hidrogênio, mas da origem da tecnologia, a rota tecnológica do hidrogênio, inclusive das células combustíveis que há 25 anos já eram uma promessa. E hoje vemos já a existência delas, os primeiros veículos, as primeiras utilidades. Então, essa amplitude do olhar fez uma congregação que foi interessante para os meus alcances, para o que precisei fazer até agora.
Você fez uma transição significativa de carreira, passando de uma posição executiva no setor de petróleo e gás para liderar a ABIHV, uma associação voltada para a indústria do Hidrogênio Verde. Como foi esse processo de transição e quais foram os principais desafios e aprendizados ao mudar de um setor tradicional para uma área emergente?
Na verdade, a minha última posição no setor de óleo e gás era como diretora geral do Instituto Brasileiro do Petróleo e ali eu já estava responsável pelas pastas de sustentabilidade. Então, eu tinha criado um grupo de trabalho de energia eólica offshore, um grupo de trabalho de captura e sequestro de carbono, grupos de trabalho que assistissem as companhias de petróleo nos seus projetos de energia renovável. O convite para assumir a associação, uma associação de hidrogênio verde, vem dessa expertise, do conhecimento que acumulamos ao longo dos anos, do networking que fazemos ao longo dos anos, da experiência em associação, e acredito, acho que fiz até um post sobre isso, que as pessoas evoluem. Então, não é defender um energético ou defender outro energético, é defender a pluralidade da matriz energética nacional e mundial, e quanto mais plural, mais seguras geopoliticamente elas são.
E agora estamos falando da descarbonização de processos produtivos. Então, não estamos falando de um mundo sem hidrocarbonetos, ou um mundo só de energias renováveis, isso não existe, o que existe é uma coadunação de todos esses vetores energéticos na direção de uma redução do conteúdo de carbono para baixo dos processos produtivos. Então, o carbono não é o problema, o problema são as emissões de gases de efeito estufa advindas disso. Então, essa transição vem, a vejo como uma evolução natural do conhecimento, assim como os motores evoluíram em direção ao motor elétrico. Acho que todo profissional, ou uma parte dos profissionais, tende a fazer uma migração em direção a pensar em como descarbonizar os seus processos produtivos, as suas matrizes energéticas. E aí, dentro do próprio setor de óleo e gás ou fora do setor de óleo e gás, é uma oportunidade novamente, e não é uma coisa ou outra, é uma coadunação de energéticos para essa transformação energética mundial, onde, de novo, mais importante é a redução do conteúdo de carbono de processos produtivos para essa nova ordem econômica mundial verde. Acho que toda bagagem, toda experiência de construir, de ter trazido, vir andando no crescimento na indústria do petróleo me permite ajudar, auxiliar e ter bastante bagagem para começar uma nova indústria como a do Hidrogênio Verde hoje no Brasil.
Com base em sua vasta experiência em análise de negócios e estratégias no setor energético, como você avalia o papel do Hidrogênio Verde no futuro da matriz energética brasileira e global, considerando as questões ambientais e a busca por fontes de energia mais sustentáveis?
O hidrogênio verde certamente tem um papel muito relevante para o nosso futuro e é interessante destacar que ele representa o avanço tecnológico que temos hoje e transcende o que discutimos sobre matriz energética. O hidrogênio verde não é uma energia, ele é um vetor energético, um carregador de energia. Pode ser utilizado em queimas normais, como um armazenador, na produção de amônia, metanol, safra, fertilizante, aço. Essa é a sua pluralidade, a sua beleza: ele é plástico, plural como o petróleo. Existem diversas utilidades para o hidrogênio verde, e hoje ele representa o avanço tecnológico que temos, mas é claro que podem surgir outras tecnologias. Estamos vendo hidratos, hidrogênio natural, enfim outras técnicas e tecnologias que podem suplantar. Por isso, é importante que o Brasil não perca essa oportunidade de conduzir essa neo-industrialização com que temos em mãos hoje, aproveitando 90% da matriz elétrica renovável, esse grid tão expansivo que temos, tão espraiado que temos e que você pode colocar um eletronizador na tomada e tem uma garantia no Nordeste de 90% de energia renovável. Isso é um diferencial competitivo que temos, mas é um diferencial competitivo temporário, outros países também estão correndo atrás. Questões ambientais relacionadas ao hidrogênio verde não se referem à matriz energética, mas aos processos de descarbonização para reduzir o conteúdo de carbono dos produtos que temos. Quando se fala em aço verde, por exemplo, é produzir aço com um conteúdo de carbono reduzido para atender às exigências ambientais e socioambientais atuais. Ao substituir a queima de produtos ou processos produtivos pelo hidrogênio verde, você reduz o conteúdo de carbono. Até mesmo no processo de dessulfurização do próprio petróleo, hoje as empresas usam o hidrogênio cinza a partir do gás natural para dessulfurizar, se você usar o hidrogênio verde, reduzirá o conteúdo de carbono do próprio barril de petróleo. O hidrogênio verde não é apenas matriz energética, é processo produtivo, é aço, é fertilizante, é metanol, é amônia, é muito mais do que uma matriz.
Entre suas atividades constam programas de inclusão e equidade feminina no setor de energia. Como você tem visto a participação da mulher em cargos de liderança na indústria nacional? E quais são suas principais iniciativas para contribuir numa maior participação?
O tema da inclusão feminina é um tema que está fora da pauta de energia, equidade de gênero é uma bandeira muito cara para mim, pelas mulheres com quem trabalho, pelas mulheres com quem me juntei nos últimos quatro, cinco anos. Tenho duas iniciativas, o EMPODEREC e o “Sim, Elas Existem”.
Faço parte de um grupo chamado Mulheres de Energia. O EMPODEREC é um programa de mentoria feminina para mulheres que estão começando, jovens que estão começando na carreira de energia. É um programa aberto e gratuito que comecei com Agnes da Costa e Renata Isfer, que na época eram servidoras do Ministério de Minas e Energia. Renata agora é presidente da Biogás e Agnes agora é diretora da ANEEL. Fazemos mentorias e convocamos várias executivas do setor para mentorar jovens que estão entrando no mercado. O “Sim, Elas Existem” é uma listagem de mulheres executivas de nível C-LEVEL prontas para assumir posições de liderança no mercado de trabalho de energia. É uma listagem que preparamos uma vez por ano, com um site e todo um engajamento também com C-Level da área de energia. E o Mulheres de Energia é um grupo de engajamento, de sonoridade de mulheres de C-Level.
Sobre a participação de mulheres em cargos de liderança, acho que essa participação continua pequena, assim como é pequena a participação de mulheres em cargos de liderança, mas nós somos muito vocais, exigimos muito a participação das mulheres em eventos, em webinars, em posições, somos muito exigentes. Não é um cabo de força entre homens e mulheres, é apenas para dizer que estamos aqui, estamos prontas, temos uma formação muito boa, algumas muito mais bem preparadas do que alguns homens. Somos extremamente técnicas, inteligentes e bem dispostas. Temos uma inteligência diferente nesse mundo pandêmico, recessivo e global. Muito exige uma forma de solucionar problemas que o raciocínio desenvolvido até agora pelo homem branco, hétero, cabeça branca, barrigudo de blusa azul, não alcança mais. Precisamos de um pensamento diverso, do pensamento da mulher, do negro, da negra, da pessoa com deficiência, do LGBTQI+. Precisamos de outras formas de pensar, e a mulher pode agregar muito. Já é sabido que ter mulheres em posição de liderança aumenta o resultado das empresas, tem uma série de resultados de pesquisas que já foram feitas pela KPMG e outras mostrando o quanto as mulheres são mais criativas e como o resultado das companhias aumenta, mas também acho que ter mulheres na liderança é tão importante quanto ter homens, deveria ser uma coisa natural, não deveria ser uma surpresa quando alguém vê e fala assim “Ah, a ABIHV é liderada por uma mulher”, isso não deveria ser uma surpresa, deveria ser um tratamento lógico e equânime como se fosse um homem.
Considerando sua vasta experiência como diretora executiva no IBP e sua atuação atual na ABIHV, quais são as principais diferenças e semelhanças que você encontra entre as indústrias de petróleo e gás e a do Hidrogênio Verde em termos de desafios e oportunidades?
Bem, são duas indústrias muito diferentes, ainda que ambas sejam da área de energia. A indústria do petróleo é antiga, consolidada, arraigada, construída sobre princípios muito antigos, de pessoas muito antigas. Enquanto isso, a indústria do hidrogênio verde nasce com uma regulação nova, com um espírito renovável e jovem, com uma preocupação muito grande com inclusão e com a sociedade. Assim como a energia eólica e a energia solar, a indústria renovável está na ponta, com uma preocupação maior com a sociedade, uma maior interação com a sociedade. Então, tem toda a questão da mulher, do gênero, da captura da percepção da sociedade em relação a essa interação, a transformação de uma carreira da indústria de óleo e gás tem um aproveitamento muito grande da parte técnica, certamente. Quando se fala de transição energética, de matriz energética, de planejamento, o planejador energético, que é a minha função, tem uma analogia muito grande de uma função para outra. Mas tecnicamente, as indústrias são diferentes.
O que trago forte é uma experiência de gestão, apesar de ainda não ter uma equipe, mas o gerenciamento de uma associação, toda a parte de governança, todo o entendimento de associado, de gerenciamento de associado, de conhecimento da máquina pública, principalmente, como era na associação anterior do entendimento de como funciona fazer política pública, caminhar pela política pública é a mesma coisa que faço agora, só que do lado da ABIHV. Entender de orçamento público, de política pública, desse meio, para poder construir uma indústria nova que vai trabalhar junto com a indústria de óleo e gás, é bom sempre destacar isso: o hidrogênio verde não é um concorrente da indústria de gás natural. Na verdade, ele caminha junto com a indústria de petróleo e gás, é uma oportunidade para as empresas de petróleo caminharem par e passo, mesmo que venha a existir uma questão mandatória de uso de hidrogênio verde na indústria do petróleo, são oportunidades de descarbonização que andam juntas.
Diante de sua vivência na área executiva, qual seria sua mensagem final para esta entrevista, visando contribuir com alguém em início ou fase de transição de carreira?
Para contribuir com quem está começando na carreira, acho muito importante ter como falo muito para as minhas mentoradas, três coisas. Invistam em inglês, ou seja, um inglês assim muito bom, não é um inglês “eu me viro”, não, um inglês que seja realmente de destaque, porque é muito importante. Você será chamado para muitas reuniões, muitas conferências, e você precisa ser o melhor inglês na mesa. Segunda coisa, Excel, sempre vai ter uma planilha para você fazer, e você tem que saber operar com isto, ainda não tenham inventado uma ferramenta melhor. Então, saiba trabalhar bem com uma planilha. E, por incrível que pareça, uma percepção: as pessoas sempre vão te julgar pela aparência e pelo que você fala. Então, estejam sempre preparados. Não cheguem, como falo para os meus alunos também, não cheguem em nenhuma reunião, nenhum encontro, nenhum evento sem saber quem são seus interlocutores, quem é a pessoa do outro lado da mesa com quem você vai falar, quem é que você vai conhecer. Saibam quem são as pessoas, o que elas fazem, o que elas estudaram, como é que elas chegaram até ali, que assunto é esse que você vai discutir, você vai abordar. Sejam sempre preparados. O conhecimento não ocupa espaço, então estudar nunca é demais. Acho que esse seria o meu recado que vale para quem está começando, para quem está no meio, é para todo mundo, e obrigada pela oportunidade.
Lições de carreira
Em conclusão, a história de Fernanda Delgado nos inspira a buscar a diversidade de conhecimentos e a coragem para enfrentar novos desafios. Sua trajetória de sucesso, da indústria do petróleo à liderança no Hidrogênio Verde, destaca a importância da inovação e da sustentabilidade na matriz energética. Que sua jornada inspire mais mulheres a assumirem papéis de destaque na indústria energética, contribuindo para um futuro mais verde e inclusivo.
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Nos encontramos no próximo artigo!
Abraço, Jonny