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Coluna Lígia Fascioni | Um projeto para ser copiado
23 de Abril de 2017

Coluna Lígia Fascioni | Um projeto para ser copiado

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Por Ligia Fascioni 23 de Abril de 2017 | Atualizado 23 de Abril de 2017

Em tempos de polêmica sobre street art nas cidades, Florianópolis já tinha descoberto a solução há 15 anos. Mais exatamente a ACIF, com o projeto Trindarte. Não tive mais notícias, mas penso que foi uma das soluções urbanísticas mais bacanas que a cidade já experimentou; tomara que continue!

 

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Na época, tive o privilégio de pintar o muro da Academia de Polícia no bairro da Trindade, em Florianópolis, está fazendo 15 anos. Como o tempo passa rápido! Como, naquela época, poderia imaginar que hoje estaria morando em Berlim e alimentando meus olhos diariamente com street art?

 

Observando que os muros e paredes da região estavam sujos e causando má impressão, os organizadores conseguiram patrocínio de tintas e materiais com os comerciantes locais e promoveram um verdadeiro festival de street art. Os interessados deviam enviar seus desenhos que seriam mostrados para os donos dos respectivos muros; caso aprovassem, seria executado (olha aí uma solução baseada no consenso que é boa para todo mundo!).

 

Escolhi o muro da Academia de Polícia porque tinha um ponto de ônibus lá. Minha ideia era desenhar uma fila de pessoas conversando que seriam misturadas com as que estivessem esperando a condução. O desenho era genérico, baseado em ilustrações de um livro que eu tinha escrito antes (“De fila em fila: um guia de sobrevivência“, esgotado há anos — que me rendeu uma entrevista no Jô Soares), mas na real, não sabia exatamente quem seriam os personagens que iria desenhar.

 

Na época, 2002, estava escrevendo minha tese de doutorado e trabalhando em período integral em uma empresa privada. Assim, só tinha tempo para pintar o muro aos domingos; por esse motivo, levei quase dois meses para terminar de desenhar os 42 personagens ao longo dos 14 metros de muro. Olha, foi uma das coisas mais legais que já fiz na vida!

 

Tentei representar ao máximo os frequentadores do ponto de ônibus: estudantes da universidade, senhores e senhoras do curso da terceira idade, meu professor de mergulho, o Guga Küerten (que não frequentava o ponto, mas morava num bairro próximo), vendedores de tainha, criadores de curió, casais de namorados, mães com filhos pequenos, torcedores da Copa do Mundo (que seria realizada alguns meses depois), hippies, cambistas, enfim, todo mundo! No final, acabei escrevendo os prováveis diálogos entre eles no mais castiço “manezês”, espécie de dialeto ilhéu.

 

Justamente porque estava a desenhar pessoas, muitas se sentiam à vontade para interagir e dar palpites na obra, coisa que eu adorava. Lembro de umas freiras que estavam passando um dia e pediram para pintar um pouco; minha professora de ginástica, a querida Cida, que também deu suas pinceladas. Até meu saudoso e querido pai apareceu lá um dia para ajudar também. Uma farra!

 

Uma pena que na época eu não tinha câmera digital e o mundo não era tão fotografável; assim, tenho poucos registros e de qualidade questionável.

 

Das muitas histórias que vivenciei e dos surreais diálogos que lá se passaram, tenho registrados alguns. Lembro dos mais curiosos:

 

(1) Um senhor passou uma tarde inteira conversando comigo enquanto pintava; narrou toda a vida dele, desde menino até quando terminou a escola e fez concurso público. Hoje era aposentado, mas, contou, com orgulho, que sabia fazer 35 coisas na época em que trabalhou. Apesar de não entender direito o critério para classificar as tais “coisas”, fiquei assombrada. Acho que não sei fazer tudo isso não…

 

(2) Uma vez um carro cheio de gente parou para pedir, em coro, que eu incluísse na fila um torcedor de um dos times de futebol da cidade, o Avaí. Como não gosto de confusão, fiz um do Figueirense também. Algumas semanas depois, parou um carro cheio de torcedores do Figueirense que tiraram várias fotos ao lado de seu “representante” na fila…rsrs

 

(3) Um visitante contumaz era um catador de papel da região. Ele sempre parava seu carrinho ali e ficava conversando. Um dia ele criou coragem e me perguntou se eu estava ganhando dinheiro para fazer aquele trabalho. Expliquei que não, que era um projeto coletivo e voluntário. Aí me perguntou se eu sabia desenhar as pessoas “como elas realmente eram”, pois meus desenhos não representavam muito bem, conforme as palavras dele. Eu disse que não sabia desenhar da maneira como ele queria, como se fosse uma foto. Aí o moço não se conteve: “Mas então é por isso que não estão lhe pagando pelo trabalho! É porque você não sabe desenhar!“….hahahahahahahaha… adorei! Quem sabe ele tinha mesmo razão?

 

(4) Num dos finais de semana, tive que gastar toda a minha lábia para negociar com um menino que queria que eu desenhasse uma cobra para assustar as pessoas que estivessem no ponto. Consegui trocar por uma galinha e um passarinho…rsrsr

 

(5) Estava um dia calmamente pintando, quando se aproximaram três guardas: gelei, pois no final de semana anterior tinha justamente desenhado…um guarda! Achei que fossem reclamar, mas um deles disse que tinha um pedido; ele ficaria muito feliz se eu atendesse. Esperando o pior, olha o que o moço me disse: “É que todo mundo acha que aquele guarda ali sou eu; será que você podia escrever meu nome no distintivo para as pessoas terem certeza?”. E aguardou calmamente eu fazer a alteração para os colegas poderem tirar a foto dele ao lado do sósia…rsrs

 

(6) Uma moça que estava fazendo mestrado na UFSC me pediu para usar a imagem de uma estudante de arquitetura negra no seu documentário sobre cotas. Apesar de acreditar que essa não é a solução para a desigualdade (discuti bastante com ela a esse respeito, a menina era uma querida e super inteligente; respeitou minha opinião sem insistir), é claro que fiquei muito honrada por ela usar a imagem no trabalho.

 

Estou com outros projetos prioritários, mas um dos itens da minha lista é me enturmar com os grafiteiros de Berlim para ver como funciona a pintura de paredes por aqui (não quero correr o risco de ser presa…rsrs). Tenho para mim que é só uma questão de tempo.

 

Enquanto isso, só queria lembrar que Floripa tem projetos bem bacanas que podem ser ressuscitados (se é que já não estão sendo). Fica a dica 🙂

 

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